Um primeiro aviso importante: esse texto é bem longo. Se há uma estatística que dispensa pesquisas para ser comprovada é essa: 10 entre 10 criativos não gostam de pesquisas. É congênito. É visceral. É um reles prazer em meio à dor de ver as ideias serem dizimadas. Eu desisti de lutar contra o fato. Praguejei, blasfemei, gritei em vão. Hoje, percebo que as pesquisas chegaram como o primeiro tijolo no Muro de Berlim. No começo, ninguém acreditou que aquilo duraria muito tempo. Quando percebemos, já era tarde. Só uma improvável fuga nos une nesse campo.
Apanhamos por anos em silêncio. Reclamando no cantinho. Esse é o último suspiro de resistência. Um sopro sem poder algum. É hora dos rebeldes de calça Diesel e camisa preta admitirem que esse muro não vai cair. É uma fortaleza fundada no medo e no temor. Esse pequeno longo tratado tem como objetivo deixar registrado alguns dados observados no caminho. Tem sangue, lama, tiros e uma lâmina fina de ironia.
Existe uma razão para que a nossa área seja chamada de Humanas. É porque ela está na ponta oposta da estatística. Não é uma natureza fria. Não pode ser reduzida a cálculos ou fórmulas. A grande riqueza da área de Humanas é a subjetividade. A impossibilidade de colocar tudo em caixinhas. Por isso, sempre desconfiei de pesquisas. Elas procuram por um número. Por uma média que agrade a todos. Ou que não exclua ninguém. Sinto informar: a natureza humana é excludente. Nós nos separamos em tribos e grupos desde sempre.
O nome já diz tudo: moderador. Logo, o que sai da sala é algo que não é nem genial, nem ruim. Nem muito ousado, nem primeira ideia. Apenas, moderado. Um dos maiores fracassos da indústria automobilística foi o Ford Edsel. Os motivos para isso são diversos. Vão desde política de preço à dificuldade de reposição de peças. Um dos itens que contribuiu para o fracasso merece ser ressaltado. O Ford Edsel foi o primeiro automóvel projetado a partir de pesquisas de mercado. Ora, bolas, qual é o erro dessa estratégia tão pensada? Uma tentativa de se ajustar a todos os desejos dos entrevistados. O resultado é um carro que desagrada igualmente a todos os públicos. Um erro de 1957 que persiste até hoje. A busca de um consenso geral. O diretor de marketing do Ford Edsel é daqueles casos que deveria vir com o adesivo atrás do terno: como estou dirigindo?
Gosto de usar exemplos porque eles trazem uma certa veracidade para o meu discurso. É a repetição da estratégia tão usada no fatídico dia do resultado de pesquisa. Revelo aqui a minha experiência mais traumática em um evento desses. Envolveu uma análise que misturava diálogos dos consumidores com tiradas psicológicas de Freud para Dummies. A pessoa em questão começou o discurso dizendo que algumas marcas eram anais e outras eram orais. O desconforto foi imediato. Ela percebeu e tentou me atingir em um suposto ponto fraco. “Você está rindo, mas o futebol é uma atividade anal. O homem sente prazer quando a bola entra no gol. O ato de dirigir envolve o movimento de penetrar a chave no carro.” Eu olhava em volta, procurava pela câmera da pegadinha, mas nada. Quase todo mundo concordava como se as portas da sabedoria tivessem sido abertas naquele momento. Com alívio, descobri que a marca para a qual eu trabalhava era oral. Portanto, deveria usar mais diálogos. Não perguntei o papel de uma marca anal.
Essa é uma faceta interessante do marketing e das pesquisas no dia de hoje. O discurso repleto de jargões e de analogias que dificultam tanto a compreensão que parecem até inteligentes. Bob Hoffman, o nome por trás do The Ad Contrarian, foi quem melhor definiu esse cenário. Estamos vivendo a era dos complicadores. E basta apenas um complicador para desfazer o trabalho de 10 simplificadores. Os complicadores usam palavras longas, floreiam como ninguém. Fazem isso de tal modo que parece que eles detêm algo que você não é capaz de fazer. Veja esse exemplo retirado de um grande artigo de 2008 no The Onion (valeu Wolff), sobre como ser um mestre na arte do complicômetro: “Due to the increased scope of the project vis-à-vis Tuesday’s meeting, compounded with our aforementioned desire to maintain quality without increasing cost, an as-yet indeterminate amount of time will be allocated to our newest venture.” Pense em alguns PPTs que você já viu. Não é algo tão distante, vai.
Voltando para as pesquisas e suas peculiaridades. Lembro da primeira vez que vi um animatic. Pensei: quem fez essa bobagem? Para descobrir em seguida que a ideia em questão era minha. Eu não reconheço ideia alguma quando vejo um animatic. Sou tomado por uma vergonha incontrolável. Torço para os segundos passarem mais rápido e cessarem com o meu sofrimento. Animatic é uma piada levada a sério. E os erros começam bem antes dele ser produzido.
Um dos males do animatic é que certas ideias não podem ser contadas nesse formato. Para corrigir esse defeito, buscamos roteiros que possam ser “animaticados”. Ou seja: eliminamos uma parte importante do processo de criação. Ao invés de pensar nos melhores caminhos, procuramos pelos mais ajustáveis. Muita coisa boa morre na gaveta por isso. Outro fator que me incomoda é a tentativa de se aproximar do que seria um filme produzido. O animatic é por princípio um desenho tosco com movimentação estranha e fala estática. Já procurei muito por uma pessoa que se comporte como um animatic, nunca achei. Aí, você dá a esse desenho o papel de contar uma ideia. É como criar uma peça e esperar que o Ricardo Macchi aprove com a sua atuação. As chances são reduzidas. Ao tentar parecer um filme, o animatic levanta questões absolutamente desnecessárias (isso fica ainda mais evidente no animatic em 3D). E entrega para o consumidor um papel que ele não sabe executar.
Abro parênteses para uma outra crença do marketing. A de que o consumidor sabe criar. Desculpe, não sabe. Não é papo de criativo defendendo o seu espaço, não. É o que eu penso quando eu vejo que na barraca de churros tem a opção de recheio de cheddar e catupiry. Ou o temaki com nachos. A pizza de ravióli. Há uma diferença bem grande entre criação e invencionice. A maior parte dos consumidores tende para a segunda opção. Para o trocadilho fácil. Existem exceções, claro. E serão eternamente exceções.
O martírio do animatic continua. Porque para piorar, se ele passar na pesquisa, você fica eternamente atado ao estímulo. O que é outra ironia em si só. Chamar de estímulo. O filme passa a ter a ingrata missão de reproduzir tudo o que foi sucesso na salinha de vidro. Um dos piores elogios que eu já vi alguém fazer foi: parabéns, ficou igual ao animatic. Fosse eu o diretor, teria tomado uma overdose de coxinhas. Agora, uma questão que não silencia e ninguém responde. Por que grandes blockbusters de pesquisa não viram sucesso de audiência? Tenho as minhas teorias. Uma delas vai ao encontro do conceito de que blockbuster é aquilo que agrada a todos. Que dá destaque em tudo. É morno, e por isso, muitas vezes fracassa.
Avisei que era um tratado. Nesse processo todo, o intrigante é como a intuição foi sendo descartada aos poucos. Há clientes que têm medo de rir na hora do roteiro para não se comprometer. E os que riem e depois negam a risada com doses cavalares de racionalidade. Está aí: eu sou a favor da pesquisa na primeira apresentação. Sem caneta para ticar, sem papel. Só a primeira reação. Esse é o eye-tracking que faz diferença. O facial-recognition que não soa oportunista. O que mostra o fato sem os filtros de aprovação. Você riu? Bem, então não me venha depois tentar buscar uma lógica.
No momento em que as pessoas entram em uma sala de pesquisa, elas não são as mesmas. Elas levam os seus medos, escondem seus instintos e procuram fazer um papel respeitável perante a sociedade. Há um caso esclarecedor na AlmapBBDO. O planejamento conduziu um estudo com consumidores de duas maneiras: individualmente e depois em grupo. Uma das fases do estudo consistia em colocar fotos em uma mesa para que eles escolhessem as favoritas. Em casa, uma mulher escolheu quase o mesmo conjunto de imagens. Abdômens trincados, Brad Pitts e coisas nojentas do gênero. A surpresa deu-se em grupo. Ela ameaçou escolher uma barriga tanquinho, mas pudicamente preferiu puxar uma máquina de lavar. Aquela mesma pessoa teve dois comportamentos com resultados bem distintos. O problema é que insistimos em falar com a face que esconde as verdades. Outro exemplo? Uma pesquisa na Austrália revelou que a primeira coisa que os homens olham em uma mulher é o sorriso. Alguém acredita?
Nesse ambiente, Guerra nas Estrelas seria considerado racista. Darth Vader teria que mudar de cor e o lado negro da força, idem. Tom & Jerry seriam amigos e lutariam pelos direitos dos animais. Homer Simpson beberia sucos orgânicos, Breaking Bad seria a história de construção de caráter e redenção à família. Seria uma grande ode à vida como ela não é. Ouvi de orelhada que o pior resultado de uma pesquisa na história de Hollywood pertence a Pulp Fiction. Um dos melhores ficou com o mundialmente reconhecido: Akeelah and the Bee. Percebe a diferença? Um vai ao encontro do que a média diz esperar. O outro rompe com todas as linguagens. O consumidor, na pesquisa, prefere o fofinho.
O processo kafkaniano tira um grande valor da área das Humanas: a espontaneidade. Se eu conto uma piada, sei de imediato as reações. Se eu conto uma história, sei pelos olhares se ela provoca tédio ou insônia. Essa riqueza da emoção não pensada se esvai em ambientes controlados. Ainda mais naqueles testes em que você tem que clicar enquanto vê o comercial. Os que dizem que o vigésimo oitavo segundo do filme precisa ser mudado. Como se fosse uma matemática exata.
Hora de uma outra história real. Dois filmes são testados. Em um deles, o pack-shot foi melhor avaliado que no outro. O problema é que eram os mesmos. Incrível, não? Nem o consumidor nem o moderador foram capazes de perceber a diferença. Por quê? O foco é tão grande em achar defeitos que até o que não é acaba por se tornar. Criando uma diferença onde não existe.
Dave Trott diz que as pessoas escutam experts porque isso as isenta de culpa quando as coisas dão errado. O criador do airbag, Saburo Kobayashi, diz que experts são pessoas com conhecimento suficiente para matar uma ideia. Bill Bernbach disse há décadas, em tom de profecia: “the same data, the same technology, are available to all of us. If we all use them in the same way, we’re all going to end up doing the same thing.” No Brasil, essa frase tem uma boa tradução: se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminaria empatado.
Pesquisas deveriam indicar caminhos e não sublinhar os medos. Deveriam apostar mais no instinto do que na busca da lógica. Acredito muito na pesquisa que observa o consumidor. A que traz o não falado. Tempos atrás, vi uma que ressaltava a importância do esmalte para a classe C. Que a unha bem cuidada é um código de que a pessoa não trabalha com serviços domésticos. Isso sim é uma rota. O briefing já vem pronto. No caso de Real Beauty Sketches de Dove, o Anselmo Ramos descreve que parte do sucesso vem de uma frase muito simples: apenas 4% das mulheres se consideram bonitas. Essa verdade é o que importa. Do jeito que as pesquisas são realizadas hoje, elas garantem o lucro. Ou batem a meta. Só que elas deixam de cumprir um papel fundamental de qualquer marca: gerar valor. O que seria isso? O ato de entrar no Free Shop e olhar pela primeira vez para um Cadbury por lembrar de um gorila tocando bateria. Isso é valor. O lucro vem a reboque dessa mudança de comportamento.
Desabafo feito. Ufa. O incrível é que, mesmo assim, grandes ideias ainda sobrevivem às pesquisas. Parecem imbuídas do mesmo instinto daquele cara do filme 127 horas. Ficam ali, entre a rocha e o paredão de pedra. E para escapar, muitas vezes, têm que cortar a mão. Mas aí, na hora de filmar, a gente pede para o diretor quebrar um galho e tentar uma opção com a mão. Vai que aprova.
autor: André Kassu
fonte: http://www.meioemensagem.com.br