A gente sabe que há bons e maus profissionais, e sabe também que essa avaliação é muito subjetiva. Há quem acredite que regulamentar as profissões iria, entre outras coisas, resolver também o problema dos profissionais sem escrúpulos. Será?
Algumas das profissões mais populares no Brasil são regulamentadas, ou seja, têm conselhos que fiscalizam a atuação dos profissionais credenciados. Do jeito que a coisa funciona hoje, para poder atuar na maior parte dessas áreas a pessoa só precisa ter um diploma provando que se formou; aí se inscreve no conselho e ganha uma carteirinha, que, no final das contas, é um diploma em miniatura plastificado; enquanto a sua anuidade estiver em dia, você pode usar a tal carteirinha e exercer a profissão.
No final das contas, da maneira que o modelo está desenhado, os conselhos têm como principal razão da sua existência garantir a reserva de mercado para os tais que têm carteirinha e pagam as anuidades religiosamente. Se alguém fizer uma pesquisa séria sobre o que vai na cabeça desses profissionais é capaz de descobrir que a carteirinha é a única coisa que todos os membros têm em comum de fato.
Seria muito bacana se, além disso, os conselhos conseguissem manter um certo nível de qualidade na prestação de serviços. Pena que não é o que acontece, olha só: alguém já viu um contador perder a licença porque calculou errado um imposto e por causa disso o empreendedor perdeu seus bens para pagar a dívida que ele nem sabia que tinha quando o fisco descobriu? Já vi isso acontecer mais de uma vez e o contador fez cara de paisagem; o conselho só diz que erros acontecem. Alguém já viu um administrador ser impedido de exercer seu ofício por má gestão ou por fazer uma empresa falir? Eu mesma já entrei com uma reclamação no conselho de ética da OAB porque o advogado abandonou a causa após receber os honorários. O distinto já tinha uma lista respeitável de reclamações e foi chamado para uma acareação. Resumo da história: perdi uma manhã de trabalho para assisti-lo levar um sermãzinho do tipo “Aiaiaiai, que feio, não faça mais isso”. Fomos embora para casa e o tal mudou de endereço sem deixar rastro; deve estar por aí, livre, leve e solto enganando outros incautos. Médico, para perder a tal carteirinha, só depois que a lista de processos ultrapassar 3 dígitos e ele sair na TV acusado na justiça comum pela reponsabilidade da morte de uns 3 ou 4. Acho que o CREA também recolhe a carteirinha de volta, mas somente depois que o prédio está condenado ou cai; se você é um engenheiro de sistemas e projeta uma rede de dados ineficiente ou mal dimensionada, a solução mais comum que tenho visto é demitir o sujeito e contratar outro melhor. Ou seja, o modo mais acessível de você fazer um mau profissional perder o direito de atuar é desviando o bloqueto de pagamento da anuidade; as outras formas são infinitamente mais difíceis.
O que eu não consigo ver, por mais que procure, é onde está o valor para o cliente; onde está o compromisso com valores éticos de sustentabilidade; onde está a utilidade pública dessa estrutura tão complexa (e cara).
Podem me acusar, com toda razão, da minha análise ser superficial, simplista e grosseira; ela o é de fato. Mas, na essência, foi só o que consegui ver da minha limitada experiência com essas organizações. Se alguém tem mais para dizer, sou toda ouvidos.
Até ontem, antes de pensar com bastante cuidado a esse respeito, eu era totalmente a favor da regulamentação das profissões em geral, e da de designer em particular. Mas aí fico pensando: é mais uma reserva de mercado, não garantia de qualidade ou valor para o cliente. Boa parte não está registrado porque quer ou concorda com o sistema, mas porque é obrigado a isso. Se já é quase impossível punir um médico por má conduta, imagine só um designer, cuja avaliação do trabalho é tão mais subjetiva.
Garantir que o profissional é competente porque tem diploma é uma leviandade, que se agrava a cada dia com a proliferação de indústrias de diplomas que infestam todas as cidades. E mesmo a OAB, que faz prova, dificilmente consegue banir um mau caráter; é mais ou menos como político – o cara tem que aprontar muito, mas muito mesmo, e deixar um monte de provas espalhadas. Ainda assim eles vão estudar o caso.
E aí, será que a solução é desregulamentar todo mundo, extinguir os conselhos e se virar cada um por si e o cliente que pague a conta?
Penso que não. Os conselhos não são adequados porque o modelo no qual eles se baseiam é jurássico, completamente fora do nosso tempo. Mas outros países, que já reconheceram a inadequação desse sistema, encontraram soluções engenhosas e estão tocando a vida.
Uma das soluções são associações profissionais fortes, que possuem um código de conduta inteligível e acessível para todos, associados ou não. Quem quiser fazer parte precisa obedecer ao tal código, entre outros requisitos. As associações podem ter qualquer mote ou filosofia, desde que isso seja claramente comunicado para o público. Como ninguém é obrigado a se associar, as pessoas se agrupam por vontade própria e ideais comuns, o que torna a organização mais atuante. Se o profissional não compartilha das ideias, simplesmente não se associa; pode se associar a outra entidade ou a nenhuma.
Do ponto de vista do cliente, ele pode escolher contratar alguém com o aval de uma associação cujas práticas ele já conhece (claro que o trabalho de divulgação precisa ser intenso), contratar alguém de outra associação (porque concorda mais com as ideias) ou simplesmente contratar um profissional que não tem a chancela de ninguém por sua própria conta ou risco.
Assim, o cliente não precisa ser preocupadíssimo com a sustentabilidade (a pessoa tem o direito de escolher ser ecologicamente incorreto, se quiser) e contratar profissionais que cumpram a lei (é claro), mas foquem na competitividade e inovação a qualquer custo, por exemplo. Sem problemas, desde que o cliente tenha afinidade com o modus operandi do grupo. O importante é que as coisas sejam claras para todo mundo e que o cliente possa escolher por afinidade.
O que eu penso que não funciona é colocar todo mundo no mesmo balaio, de uma maneira completamente forçada, e empurrar goela abaixo um código de ética que poucos lêem. Se o sujeito é mais conservador, vai procurar fornecedores que sejam mais parecidos com sua maneira de pensar. Se o cliente quer ousadia nas soluções, mas está preocupado com o ambiente, há outra associação com esse foco. Escolher com informação e consciência é muito melhor para todo mundo.
Há agências que não trabalham com cigarro ou bebidas alcoólicas por livre escolha – podiam constituir uma associação e inspirar outras que pensam igual mas acreditam ser impossível. Há até uma agência de propaganda aqui de Florianópolis que levou a sua ousadia a um ponto em que eu nunca tinha visto: colocou um manifesto em seu site dizendo com todas as letras que mídia não é fonte de receita para eles (o nome da agência é Glóbulo Célula Criativa e sou fã de carteirinha, sem trocadilho). E se esses corajosos se unissem em uma associação?
Mesmo aqui no Brasil, já temos pelo menos um exemplo bem sucedido, quer ver? Se você for fazer uma cirurgia plástica, nem perca tempo pedindo o CRM do doutor; vá no site da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e veja se ele é associado. Os requisitos para fazer parte são muito mais rígidos que para obter uma licença do conselho e eles levam muito a sério a gestão dessa marca de qualidade. Eu, pelo menos, nunca vi um membro envolvido em escândalos (aliás, só soube da sua existência porque cada vez que aparece no jornal alguma vítima de plástica mal feita aparece um representante dizendo que o médico não era credenciado pela Sociedade).
Se a pessoa não quiser contratar um profissional associado, problema dela, é sua livre escolha. Se um profissional não quiser se associar, idem. Mas as pessoas que se preocupam com a formação de quem vai mexer no seu corpo, têm o direito de ter uma garantia maior do que a que o conselho oferece.
Por que não fazer algo parecido com designers e publicitários?
É claro que a execução não é simples, mas achei a ideia muito boa. Acredito que vale a pena gastar um tempo pensando mais a respeito.
autora: Lígia Fascioni |
fonte: Acontecendo Aqui