Será que as marcas levam em conta o público feminino? De acordo com Gemma Cernuda-Canelles, autora de Elas Decidem [Ellas deciden], da editora Empresa Activa, a reposta é um sonoro “não”. Para ela, esse é um erro muito grave das empresas, já que o poder de decisão desse público é enorme, a ponto de influir em 80% de todas as compras feitas no lar. Longe dos estereótipos de que somente as marcas de grande distribuição devem se preocupar em fazer contato com o público feminino, a autora assegura que as mulheres têm peso em todos os gastos da família, inclusive em produtos que até agora sempre foram considerados eminentemente masculinos, como o carro. Se elas não gostam, a compra não se realiza.
Cernuda-Canelles analisa para o Universia Knowledge@Wharton as implicações para uma marca cujos valores e características não são modificados para torná-la atraente para o grande público feminino.
Universia Knowledge@Wharton: As empresas levam em conta o público feminino na hora de pensar suas marcas e estratégias comerciais?
Gemma Cernuda-Canelles: Normalmente, as empresas sabem que a mulher-dona de casa faz as compras e sempre responderão que “sim”, que organizam grupos de discussão e que levam em conta o público feminino em suas campanhas e estratégias. Contudo, isso é justamente o que em meu livro Elas decidem explico e analiso dizendo que se trata de “ficar apenas na superfície”. De fato, o importante é ter em conta que a mulher decide e influi em 80% de todas as compras. Isto é, não apenas nas compras do supermercado, mas também nos gastos com as férias da família, lazer, escola dos filhos, vestuário, seguro médico e carro da família. Esse é o grande poder que 51% da população do planeta tem e que as marcas e empresas não estão traduzindo em negócios e oportunidades que façam de suas marcas o referencial de metade da população.
UK@W.: Por que é importante não se esquecer desse público?
G.C.C.: Porque ele é mais poderoso do que a China e a Índia juntas. Você se esqueceria desses países que são quase um continente inteiro? Creio que não. A mulher decide pela compra de 80% do que se vende […] Quem pode se dar ao luxo de se esquecer do seu cliente praticamente único? Perdão, da sua cliente?
UK@W.: Por que você acha que até agora as marcas se preocuparam mais com o sexo masculino se são as mulheres que tomam 80% das decisões de consumo?
G.G.G.: Não é que as marcas estivessem ou estejam mais preocupadas com o sexo masculino. As marcas se comunicam com o masculino porque essa é a regra. Em outras palavras, se quem cria, desenha, comercializa, decide e manda sempre foram majoritariamente os homens, o que eles criam, distribuem, comunicam e transmitem terá sempre um tom masculino, isto é, dirigido aos homens. Isso não é culpa de ninguém. É simplesmente a história da evolução. E é aí que está justamente o problema e a solução.
As mulheres querem mais, querem marcas que as escutem, que as vejam, as incluam, não que as tornem invisíveis, elas querem marcas que não perpetuem estereótipos que não interessam a ninguém, que não repitam temas com os quais elas não se identificam […] Se não sabemos o que mexe com a mulheres, que valores, parâmetros, atributos, estética e estilo mexem com elas […] continuaremos a falar das mulheres no masculino, em vez de fazê-lo no feminino.
Temos, portanto, dois caminhos: o primeiro consiste em seguir fazendo igual ao que se fez até agora, correndo assim o risco de que surja uma marca concorrente que se comunique efetivamente no feminino conseguindo que essa clientela — 80% dela de mulheres — a acompanhe. Ou então, submeter à marca ou produto/serviço a um filtro de gênero para que a proposta atinja a mulher sem excluir o homem.
Uma das principais premissas e táticas para chegar a essa estratégia em chave feminina consiste em pôr as mulheres em todos os processos de criação, desenho, comercialização e inovação. Não seria muito mais fácil pôr uma mulher para pensar como mulher em vez de designar um homem para fazê-lo?
UK@W.: Com relação às marcas, que características definem as que foram pensadas para homens e as que foram pensadas para a mulher?
G.C.C.: As marcas que farão contato com as mulheres (seja porque elas usam o produto ou porque se elas não o comprarem, ninguém o usará, porque a recomendação parte dela) devem manifestar e potencializar uma série de valores como:
- Transparência.
- Empatia.
- Humanização da mensagem.
- Exposição de uma história real e humana que dê personalidade à marca.
- Explicação clara.
- Beleza ou estética.
- Facilidade de uso e explicações claras.
- Partilhamento da informação e poder de ampliá-la.
- Excelente serviço de pós-venda.
- Pluralidade de usos; solução de problemas.
Isto não se aplica ao homem ou à mulher: é para todos e todas. O importante é que a mulher queira isso, porque é o que ela espera e é o que a valoriza. Por isso, está claro e comprovado que se uma marca se comunica com a mulher, ela supera as expectativas do homem se a mulher gostar, e assim conquista-se também o homem.
Poderíamos falar de traços mais genéricos e conceituais que diferenciam efetivamente as estratégias, posicionamentos e publicidade de algumas marcas dirigidas “claramente” aos homens e às mulheres. Nós, mulheres, queremos marcas-produtos-serviços que inspirem, isto é, que nos façam evoluir, melhorar. O homem prefere marcas-produtos-serviços que os levem a aspirar um produto cuja posse lhes confira status.
UK@W.: Existem marcas neutras?
G.C.C.: Sucesso seria conseguir marcas de gênero neutro. Por isso, criamos [Cernuda-Canelles é sócia da consultoria de comunicação Peix&Col] um serviço pioneiro a que demos o nome de GenderFilter © (filtro de gênero) e que com base em sete passos nos permite fazer uma proposta de não invisibilidade à mulher, mas que tampouco exclua o homem. Seja como for, haverá serviços e marcas claramente masculinos ou femininos se forem utilizados e consumidos por homens ou mulheres. O erro está quando um produto como um carro continue a ser anunciado no masculino quando, em 80% dos casos, se a mulher não gosta, o carro não é comprado, já que são elas que vão dirigi-lo e pagá-lo em igualdade de condições.
UK@W.: Em relação ao consumo, fala-se de criar uma estratégia comercial voltada para o público feminino. É possível falar de valores universais?
G.C.C.: Pode-se falar de valores universais, mas depende de que universo estamos falando. Não quero jogar com as palavras, mas se aplicarmos os valores que comentamos anteriormente, e que no livro são explicados como O decálogo+1 da comunicação no feminino, não apenas nos comunicaremos com a mulher, como também atenderemos às expectativas dos homens.
UK@W.: Por exemplo, o conceito que se tem de beleza não é o mesmo para uma mulher na América Latina, para outra na Europa e outra na Ásia e, portanto, a campanha publicitária terá de ser feita de maneira diferente. Acontece o mesmo com o valor da marca?
G.C.C.: É evidente que no universo da mulher há muitas mulheres, culturas, etapas da vida e momentos de decisão que regerão as preferências de marca. Na Europa, por exemplo, uma mulher de 30 anos não passará necessariamente pela maternidade, tampouco está em fase de construção de sua carreira, já que agora elas têm filhos aos 40 anos. Contudo, essa mesma realidade demográfica não se aplica às mulheres latino-americanas, que têm filhos aos 27 anos. É verdade que são matizes distintos, e há prioridades que dependem da cultura e da região, mas não devemos nos esquecer de que os produtos devem atender a necessidades estéticas e de beleza. Em cada caso, conforme a faixa etária e a região em pauta, o conceito de beleza terá matizes distintos.
Uma campanha comercial para um país ou outro será diferente, mas os valores e atributos que nos movem e a forma como queremos que nos tratem e pensem os produtos e seu uso serão bastante parecidos em qualquer lugar.
UK@W.: Quais as diferenças entre uma região e outra?
G.C.C.: Não posso dizer nada em relação às diferenças entre países, regiões e culturas de um mesmo idioma. O que foi testado, com dados do Boston Consulting Group, da Harvard Business Review, da Catalyst e da Trendsight-Marti Barletta, mostra que 90% da publicidade feita não se comunica de fato com as consumidoras, o que é muito grave. Isso perpetua a condição de consumidoras descontentes e insatisfeitas que continuam a comprar sua marca porque não há nada melhor, mas estão dispostas a abandoná-la. Esse é o grande desafio do século 21 para as marcas que queiram sobreviver e se perpetuar, bem como para as novas empresas que estejam sendo criadas. Devemos incorporar a visão feminina em todo o processo, de modo que o produto resultante comunique-se com quem o compre, e assim seja recomendado e usado.
UK@W.: Os diretores das grandes empresas, e seus acionistas, estão dispostos a retrabalhar suas marcas, em alguns casos marcas históricas, para torná-las mais femininas?
G.C.C.: No contexto atual da crise econômica, consumidoras e consumidores com acesso direto às marcas através das redes sociais, cidadãos-consumidores-ativistas, que são também formadores de opinião e de conteúdo, tudo isso aliado à necessidade de ser rentáveis, não nos permite o luxo de decidir não ser feminino. Não podemos nos fazer de surdos ao que espera de sua marca aquela que é responsável por 80% das decisões. Caso contrário, outra marca lhe proporcionará o que deseja, e aí não haverá retorno.
É uma grande oportunidade para que as grandes empresas se aproximem e reconquistem, de verdade, o coração da mulher: a rainha do consumo. Não é verdade que se vou fazer negócios com um japonês recorrerei a um intérprete de japonês e adequarei meu produto, mensagem e tom às suas expectativas? O mesmo acontecerá se meu mercado for constituído de mulheres, pois já vimos a esta altura que temos expectativas distintas em relação a um produto e a uma marca. É muito fácil fazê-lo bem e de forma rentável.
UK@W.: Que conselhos você daria nesse caso?
G.C.C.: Eu diria que se os homens não o fizerem, as mulheres o farão. Em outras palavras, há cada vez mais empresas de pequeno porte, mais ágeis e muitas delas com serviços online incorporados e com a colaboração de outras empresas que farão com que o produto e serviço por elas criados sejam, possivelmente, mais completos e adequados àquilo que a mulher espera. Será uma infelicidade deixar escapar tudo o que já foi investido na criação da marca, em produtos, na qualidade, na comunicação para que, no fim das contas, outra marca saia vitoriosa. Recomendaria também que aplicassem o senso comum à sua estratégia. Em meu livro, apresento táticas que poderão ser aplicadas. Aconselho também as empresas que ponham mais mulheres em seus conselhos de administração, em suas equipes de criação e em postos de comando. Elas serão mais rentáveis, mais sustentáveis.
fonte: Knowledge@Wharton